adestramento concluído com sucesso

Chloé Pinheiro
3 min readJun 2, 2021

O freela que você pegou vai, aos poucos, penetrando no horário comercial, já vendido em um contrato CLT. O dinheiro some e as dívidas no cartão de crédito aumentam, enquanto o feijão derrubado na semana passada começa a fossilizar na superfície do fogão. Roubam seu celular dois dias depois de você ter comprado. A louça se acumula a ponto de cheirar mal e ninguém limpa seu office porque ele está na sua home. Você dorme cada vez mais tarde e acorda cada vez mais cedo, mas não dá conta de tudo que queria fazer. Pensa nas coisas que queria fazer, que coisas são essas, que acabam sempre sumindo no vácuo das que precisam ser feitas. Pensa nas mensagens de clientes às sete da manhã, nas notícias ruins que terá que dar e nas outras que nem verão a luz do dia, porque os jornalistas estão exaustos e trabalhando sob condições precárias. Mas também pensa que tanto faz mesmo, afinal de contas a influência da imprensa na opinião pública está cada vez menor, existe outra verdade, é uma questão de ponto de vista. Para quê notícias? Faz uma pausa, e duas ou mil para comer uma mini coxinha da padaria, fumar um cigarro, pegar mais água, tomar um café, olhar o Insta. E então horas depois você entrega, o que for, seja como for e termina o dia. Deu tudo mais ou menos certo, ninguém descobriu que você é um impostor. Quando sai do banho relaxante pós-trabalho, às dez da noite, você descobre que não tem mais calcinha ou cueca limpa, que o pote de água do gato está vazio — vai saber desde quando — e que esqueceu de responder uma mensagem importante no zap. Nesse momento você acaba se sentindo meio que como um malabarista especialista em bolas de fogo, e o dono do circo é bem mais maquiavélico do que os que trancam animais em jaulas. Ou talvez a lógica seja a mesma, olha aqui você queimando as mãos a troco de cerveja, Netflix e ração de gato. Enfim, você passa a não ver filmes, não ler, não ligar pra ninguém e especialmente não meditar. Se alguém pode ser sacrificado nessa história, é você, uma vez que não apenas não é fonte pagadora como é fonte gastadora. As noites dormidas são tensas, de pesadelos e despertares suados no meio da madrugada. Mas ainda é melhor do que não dormir, o que só acontece quando as mãos queimadas pelas bolas dão sinais de que vão, enfim, carbonizar e cair dos braços, deixando um toco queimado como um fósforo que apagou. É o limite, e então você fala mais ou menos isso pro seu terapeuta na sessão semanal, ou diz genericamente que anda estressado e dormindo mal, ao que ele responde dizendo que você precisa eleger prioridades, aceitar que é impossível dar conta de tudo, sair do racional e relaxar mais. Tudo bem pifar de vez em quando num contexto como esse. Vida de malabarista não é fácil e mesmo o mais adestrado dos micos de circo faz o passinho errado vez ou outra. No fim você sai de lá puto por estar gastando dinheiro para ser convencido de que o problema não é o sistema, mas sim como você opera dentro dele. Mas mesmo assim, por algum motivo indecifrável, ouvir o óbvio te faz adormecer antes das onze, como um anjinho sonolento. E então no dia seguinte você acorda cedo para ler um livro, rega e conversa com suas plantas, passeia com o cachorro por mais de dez minutos, consegue dedicar horas para cumprir apenas uma mísera tarefa, sem pensar em mais nada, consegue até lavar as cobertas. Você senta animada para escrever sobre si na hora do almoço, sonhando até em escrever mais, quem sabe sobre outras coisas para outras pessoas. Vamos fazer, enfim, as coisas que queríamos fazer. Em um canto escuro da mente, um mico de circo sorri com escárnio, à espera do ciclo recomeçar.

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Chloé Pinheiro

Repórter da revista Veja Saúde, da Abril. Fora do horário comercial, escrevo livros por encomenda e textos engraçadinhos (ou não) que ninguém pediu.