Bandidos da luz vermelha

Chloé Pinheiro
4 min readMay 17, 2021

No começo, era tudo vermelho. Ao cair da noite, a lâmpada colorida acendia, revelando um quadro escuro na parede, com uma única forma branca no centro, um cavalo, grande o suficiente para ser visto de longe. No canto da sala, folhas longas de uma planta que julgo ser uma palmeira. Da rua, a janela se destacava das outras, como uma mancha de groselha numa camiseta bege. Uma lápide festiva em um cemitério abandonado. Depois de alguns dias decidi que eram um casal gay. Um arquiteto e um advogado. Quiçá um escritor e um cozinheiro. Antes de dormir, ainda costumo dar uma última olhada para eles. Sussurro um boa noite mudo. Naquela época, nos finais de semana, formas abraçadas se encostavam no parapeito da janela, cigarro na mão, mais gente na casa. Imagino que ouviam música também. Uma vez, flagrei alguém acenando efusivamente para outra pessoa na rua. As risadas ressoaram na rua, chegaram aos meus ouvidos.

Trabalhávamos juntos. Descobri que um deles era careca vendo o topo lustroso da cabeça por cima de um computador. Mudei minha mesa para mais perto da janela para observar melhor. Quando a luz vermelha acendia, chegava também o fim do meu expediente. Se ele fazia hora extra, a luminosidade branca asséptica dava o tom da esticada. Às vezes eu acompanhava. Pensava se, de noite, eles olhavam o entediante interior do meu apartamento. Eu que nem uma lesma no sofá, assistindo De Férias com o Ex. Pensando no meu ex.

Em dezembro passado, a sala parou de acender. Achei que estivessem de férias, que tinham ido viajar. Passou um mês e nada. Se a teoria das férias for real, eles devem ser ricos, porque ninguém da plebe passa mais de trinta dias de folga. Se forem ricos, não são escritores. Comecei a me preocupar com a palmeira da sala deles, mas ela continuava viva, então alguém estava frequentando a casa. Nas minhas noites de insônia, me pegava espiando. Vai ver adquiriram hábitos noturnos.

Até que voltaram, semanas atrás, quase dois meses depois de terem partido. A luz vermelha ressurgida me tranquilizou, dando um senso de normalidade em meio ao caos. Fiquei feliz que estavam vivos e mantinham viva a ideia absurda de ter uma lâmpada diferente na sala. Nesse ínterim, reparei que tinha mais gente fazendo isso. Eram poucos, mas existiam. Nos últimos andares de prédios antigos com fachada de pastilha, em meio a grandes conglomerados de varandas gourmet e imensos blocos cinzas. Um pisca-pisca de Natal que brilha em março, o teto verde de uma varanda, e até uma barraca com luz azul embaixo do Minhocão. Era uma sociedade secreta de gente subversiva, que se recusava a descansar sob a recatada luminosidade branca ou amarela depois de um dia no Brasil. Se aqui tudo acontecia, também tinham o direito de ter abajures laranjas ou chuveiros sob luz negra. Também podíamos ter luzes coloridas mesmo sem ter teto.

Eu caminhava pelas ruas anotando endereços e janelas. Quem sabe um dia isso não viraria uma série fotográfica ou uma coletânea de contos. Algum suspiro em meio às notícias ruins. Mas ficou difícil desenrolar essa ideia. Algo está estranho desde que meus vizinhos voltaram. Primeiro, meu companheiro de trabalho não é mais careca, mas sim um homem com cabelos castanhos. Será o marido do outro? Esse fica longos períodos em frente ao computador, incluindo domingos à noite e sábados de tarde, impedindo meu próprio descanso. Às vezes, dispensa até a luz branca e trabalha com a sala apagada, a penumbra interrompida apenas pela visão fantasmagórica das sombras do seu rosto, iluminado pelo computador.

Reparo que, nos dias de luz majoritariamente branca, as coisas dão errado para mim. Portanto, passo a me dedicar à escrita criativa só quando a luz vermelha acende. O problema é que a sala deles está cada dia menos vermelha e mais branca. Pior: outro dia uma mulher estava sentada no sofá. Não tenho certeza, mas parecia muito ser uma mulher. Às vezes, essa forma humana passa horas no sofá, sem se mexer, como um manequim. Espero que não tenham se separado ou vendido o apartamento. Será que estão entre aqueles que, sentindo o calo apertar no sapato, estão deixando São Paulo, como os peixinhos que aceleram as nadadeiras antes do tubarão de fato chegar? Talvez eles só precisem de mais espaço, e mudaram cada um para seu próprio apartamento, como eu, que também tenho mais espaço agora. Quando vou ao mercado, me demoro na frente do prédio deles, para ver se consigo pescar uma informação que me ajude a entender porque as luzes estão mudando de cor. Mas não, ninguém parece recém-saído de um apartamento vermelho. Uma viatura passou a frequentar a calçada, e me pergunto se de repente virou crime a iluminação subversiva. Pode ser impressão minha, mas reparo também que há também menos luzes coloridas pelo centro enquanto pedalo de noite.

Semana passada, o grande quadro da sala foi retirado. Deve ter sido de madrugada, caso contrário eu teria visto. Deve ter sido enquanto eu sonhava estar lá, afundada num sofá antigo, amparada pelo grande cavalo correndo na parede, cercada pelo calor rubro. A palmeira continua no lugar. Um pouco mirrada, verdade, mas ali. Ora, se tivessem se mudado, não deixariam uma planta ou a lâmpada mágica, que ainda brilha vez ou outra, embora esteja pendendo para o róseo. Ontem, uma cabeça surgiu na janela do quarto, pensativa e parada. Poderia ser o manequim. Na sala, a coisa mais estranha. A lâmpada vermelha acesa foi atravessada por um grande clarão. Forte a ponto de eu precisar desviar os olhos. E, então, tudo preto.

Tentei ficar acordada, mas ao fim de três horas de vigília, no escuro também, para não ser notada, enfim cedi à privação de sono. Hoje o apartamento acordou vedado por cortinas. Já eu tiro as minhas do varão. E decido comprar uma luminária vermelha para a minha sala.

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Chloé Pinheiro

Repórter da revista Veja Saúde, da Abril. Fora do horário comercial, escrevo livros por encomenda e textos engraçadinhos (ou não) que ninguém pediu.