Como assim não tem polvo, Gilberto?

Chloé Pinheiro
7 min readMar 26, 2021

Até agora, ninguém disse a minha avó uma palavra sobre câncer, mas acho difícil acreditar que ela não sabe o que está acontecendo. A boca mole e o olhar baço passam a impressão de que não pensa direito, é verdade, mas ela sempre esteve no comando de tudo. Era a primeira gerente de banco mulher de Santos, devoradora de homens, fugiu de casa aos três anos, aprendeu a ler sozinha. Ela que ensinava as professoras, afinal sabia de tudo. Para ela o fato de eu escrever era uma confirmação de seu próprio talento, agora refinado e catapultado para o mundo. Me opunha tanto a essa herança intelectual e seu tom aristocrático que nossos contatos eram explosivos e, portanto, limitados. De modo que só agora sei pela minha mãe que não só ela estava em processo intenso de amaciamento como se apoiava numa bengala nos últimos anos. Apesar de obesa, praticamente não comia. Sua dieta consistia em salaminho, sushi, amarula e amendoim japonês. Suas maiores caminhadas eram do Uber para a agência do Banco do Brasil, onde ia regularmente como se não tivesse se aposentado perturbar os funcionários, que tremiam de leve ao ver seus passinhos decididos com o salto baixo tamanho 34.

A rotina foi interrompida porque ela teve um AVC, que no fim se mostrou o menor dos problemas. O anticoagulante que ela começou a tomar para diluir o coágulo no cérebro fez sangrar o estômago, e assim todos (menos ela) ficaram sabendo que um câncer a comia por dentro há anos. Já estava espalhado pelo menos para o pâncreas e intestino. Será preciso fazer mais exames para saber se existe opção de tratamento. Portanto, do modesto quarto na Casa de Saúde de Santos, com suas janelas abertas para uma rua quieta, uma TV de tubo e as paredes descascadas, agora ela vai para o A. C. Camargo, a meca da oncologia. O hospital paulistano tem pisos lustrosos, vidros espelhados na recepção, quartos com janelas fechadas hermeticamente e filas para check-in que lembram uma bilheteria de cinema — nesse caso passando um filme sempre de terror.

O que vejo ainda na Casa de Saúde de Santos é um gatinho debilitado, não a pantera que se orgulhava de ser “a avó menos avó do Brasil”. Ainda na Baixada, ela começa a falar com os mortos. Com um morto em específico, Tide, um cunhado que teve um infarto fulminante bem antes de eu nascer. Oi Tide, dá licença, Coré, quero falar com o Tide. E ria de volta para ele. Os vivos se entreolhavam quietos. Minha avó se formou bruxa. Alimenta com regularidade seus cristais, signos, deusas, runas e oráculos. Muitas de suas feitiçarias ainda são mistério para mim. Dias depois dos primeiros contatos com o além, já em solo paulistano, meu avô, outro ser holístico, diz que, se ela morrer, terá dificuldades de passar para o outro lado e não poderá ser cremada de jeito nenhum. Pergunto o porquê, enquanto tomamos um chocolate quente na lanchonete em frente ao A.C. Camargo. Ele diz que ela tem coisas demais para resolver com gente “barra pesada” e se cala.

O quadro clínico da minha avó desafia os médicos. Ao reduzir os anticoagulantes para conter os sangramentos do tumor, um novo coágulo se forma e provoca uma embolia pulmonar. Precisa de UTI. A tempestade de remédios e os bipes que soam o dia inteiro são o momento de virada para sua lucidez. A partir daí, passa horas apagada com um cateter de oxigênio enfiado no nariz. De vez em quando acorda, levanta o braço e ergue um dos dedos com muito esforço em direção à parede, gemendo palavras incompreensíveis. Começa uma romaria de parentes indo se despedir, e é como se os mortos a visitassem também. Entre a saliva escorrendo da boca caída e cochilos, avisa as minhas tias que Guila, outro irmão falecido, está ali, mandando lembranças para todas. Poucos dias depois, uma melhora discreta, e ela é transferida para o quarto. Repete que está pronta para ir embora, pergunta onde está sua bolsa, a carteira, e pede que ninguém se preocupe, pois ela irá pagar tudo. Ela sempre gostou de pagar tudo. Pagava muita comida para mim na infância. Em um dos dias desse período de relativa tranquilidade, passo no McDonalds no caminho do hospital, compro cinco McOfertas e abro a porta do quarto já sacudindo os sacos das batatinhas. Ela gostava de passar comigo no drive-thru e dizia que não ia comer nada, mas depois ia beliscando as batatas até acabarem. Dessa vez, come três, se muito. E reparo que seus dentes estão amarelos, cilíndricos, com uma sombra negra na base, como se quisessem pular para fora da boca.

No dia marcado para fazer a biópsia e entender melhor o tumor, minha vó tem uma piora brusca. Seus batimentos despencam, junto com as plaquetas, a níveis dramáticos. Está numa linha tênue entre uma hemorragia ou uma trombose irreversíveis. Quadro delicado demais para bancar qualquer intervenção, avisam os médicos. As pernas sufocadas em meias antitrombo exibem hematomas, ela sente frio mesmo cheia de cobertas e a pele está fina e quebradiça. Metade da família quer intensificar as medicações, ir adiante com a quimioterapia antes mesmo de saber qual é o tumor. Mas para um câncer em estágio terminal como esse a chance de sobrevivência é mínima, argumento com meu tom científico. Por fim, vence a corrente dos cuidados paliativos, e concordamos em não subir mais com ela para a UTI, e sim dar o máximo de conforto possível aos seus últimos dias. Para mim, é como se minha vó já tivesse morrido. Falamos sobre sua vida e morte no quarto, enquanto ela, aérea, resmunga coisas intraduzíveis, pede para os mortos irem embora. É o delirium, dizem os médicos.

Uma coisa não deve ser confundida com a outra. De acordo com a Associação Americana de Psiquiatria, o delirium é uma perturbação da consciência sem uma demência prévia, resultado de uma causa fisiológica direta — nesse caso, os remédios e fortes sedativos para as dores que minha avó sente. Já o delírio é uma crença fixa, segundo a mesma entidade, que não muda mesmo com claras evidências de que o acometido está alucinando. Leio que uma das maneiras de tratar o delirium é trazendo o paciente de volta para a realidade. Assim, reúno algumas fotos clássica da família e levo para o hospital. Ela aponta o dedo e murmura os nomes, enquanto meu tio tenta lhe dar papinha de banana. Acerta quase todos, mas é como se não ligasse as pessoas nas fotos aos parentes de corpo presente. Quando passa o Tio Tide, aponta e diz Olha lá, Tide, é você! E pisca para a gente, certa de que vemos as mesmas coisas.

Alguém precisa dormir com ela e me ofereço para isso. Minha avó passa a madrugada alternando gritos de pavor com pedidos de misericórdia. Reza o pai nosso várias vezes, como naquelas novenas que passam na Rede Vida, algo que só sua mãe, minha bisa, fazia. Chama por minha mãe. Arranca o cateter. Preciso chamar mais de uma vez a enfermeira para aumentar a dose de morfina e sedativo. Mesmo assim, chora de dor. Não trocamos um olhar consciente. No dia seguinte, vou para a casa, trabalho e volto para o pernoite. O quadro clínico piora, mas está mais entorpecida. Sentada ao seu lado, segurando a mão pequena, que hoje parece até pueril, tento me lembrar da última vez que nos vimos de verdade. Ela morava em Curitiba, e nós estávamos brigadas há mais de ano. Fui para lá visitar a minha mãe e, depois de um churrasco com amigos, voltei bêbada e feliz para casa. Ela estava no pé da minha mãe, queria porque queria me ver, e dei a ideia de jantarmos no Nakaba, seu japonês preferido. Vou pagar tudo, não se preocupe, disse em sutil vingança, e assim fomos. Gosto de lembrar do salão cheio de divisórias de bambu vazio, dos combinados tradicionais saindo só para nós. Da família onze da noite, rindo alto, um raro momento de comunhão minha com a família. Ela tomando cerveja também, abraçando os garçons, dizendo Como assim não tem polvo, Gilberto?, e rindo aquela gargalhada que não deixava um tímpano incólume.

Resolvo pedir sushi delivery no hospital em sua homenagem. Quarenta minutos depois, estou cercada de um “rodízio em casa” (termo que ela odiaria, pois é tradicionalista e não gosta de hot rolls ou temakis), comendo na mesinha porta-bandejas que fica ao seu lado. Quer um sushi, vó?, pergunto retórica. E como em silêncio, enquanto ela, sem despertar, mexe a boca e franze as sobrancelhas. Sua articulação com o invisível é tão sólida e constante que não creio que esteja com delirium nem delirando. Se há algo do outro lado, ela seria a pessoa a saber, obviamente. E também não acharia ruim o fato de eu estar comendo um banquete ao lado de seu leito moribundo. Pelo contrário, acharia engraçado. Penso sobre essas coisas com a boca ardendo de wasabi, como ela me ensinou, tentando manter minhas reflexões e conjecturas no campo mais terreno possível, para não atrapalhar nenhuma guerra espiritual que esteja travando. Lembro dos sushis que comemos nos últimos vinte e cinco anos entre Santos e Curitiba, da sua roupa sempre manchada de shoyu, até que uma pontada no céu da boca interrompe meu devaneio enlutado. É um pedaço de espinho no salmão. Dou uma risadinha. Ela com certeza reclamaria disso.

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Chloé Pinheiro

Repórter da revista Veja Saúde, da Abril. Fora do horário comercial, escrevo livros por encomenda e textos engraçadinhos (ou não) que ninguém pediu.