A história de uma vítima do tratamento precoce

Chloé Pinheiro
9 min readJun 3, 2021

Bolsonaro, Ministério da Saúde, Prevent Sênior, Hapvida, Unimed, Nise Yamaguchi e outros médicos compraram uma ideia que está matando pessoas, mesmo que indiretamente. Conheça Sônia, uma dessas vítimas, pelas palavras de seu sobrinho.

*Todos os nomes foram alterados para proteger a intimidade do entrevistado

Em janeiro de 2020, a cobertura da Covid-19 era apenas mais uma das minhas trocentas pautas e demandas da vida de freela meio repórter, meio redatora publicitária. Com o tempo, foi ocupando a minha agenda e se tornou minha principal fonte de renda. Isso significa que fazem ao menos 15 meses que tento, em vão, explicar para os leitores (muitos deles médicos), que investir em tratamento precoce é um erro, que as pessoas estão morrendo por causa disso. Não por que os remédios em si matem — isso até pode acontecer, mas o efeito indireto é bem mais nefasto e abrangente. Ou a pessoa crê estar segura e se expõe mais, ou demora para procurar atendimento médico agarrada numa falsa esperança de cura, ou, pior, recebe os remédios ao invés do tratamento adequado. É o que aconteceu com Sônia*, 78 anos, conhecida pelo seu senso de humor e riso fácil, que nunca terei a oportunidade de escutar, já que ela morreu em março, depois de ser dispensada três vezes de um pronto socorro da Prevent Senior, com uma receita para oito medicamentos/suplementos em mãos.

Receita de Kit Covid com cloroquina ivermectina e outros, emitida pela prevent senior em março de 2021

Cobrir a pandemia de Covid-19 no Brasil é um trabalho inglório. Enquanto os correspondentes entram no link ao vivo tomando um cafézinho sem máscara dentro de um café nova iorquino, nós seguimos perdendo tempo para desmentir uma notícia falsa enquanto brotam mais cinco no WhatsApp da família. E mesmo desmentidas elas não morrem, vide a CPI da Covid. Está tudo lá: Didier Raoult, Elon Musk, Porto Feliz, estudo “criminoso” de Manaus, autonomia médica, ciência dividida…

Cansada dos fatos, tenho pensando mais em pessoas como a Sônia. E parto de um princípio muito íntimo. Mesmo tendo feito tantas matérias sobre o assunto, não consigo convencer minha própria mãe sobre a seguranças das vacinas e a ineficácia do tratamento precoce. Ela é enfermeira com mais de 20 anos de SUS, que toma (ou tomou, sei lá, não falamos mais disso) ivermectina para se prevenir da Covid-19, e circula com meu avô não vacinado para cima e para baixo, crente de que todos precisaremos ter contato com o vírus para que ele vá embora e a imunidade da nossa família é forte o suficiente para encará-lo. Há cinco meses ele poderia estar vacinado e não está, porque alguém contou para ele uma mentira muito bem contada, que coloca em risco a sua vida.

Estou puta, obcecada pela ideia de entender por que isso acontece e como reverter essa lógica. Mas sei que pouco posso fazer, e que a minha raiva não vai me levar a nada. Então pensei que talvez um jeito de processar isso seja, de vez em quando, contando uma história que mostre os estragos reais do tratamento precoce na vida das pessoas. Se não faz diferença do ponto de vista de mudança de opinião, que seja ao menos uma homenagem para quem morreu sem necessidade, como a Sônia. E foi assim que conheci o Marcos, um médico tucano, o sobrinho da Sônia, que não se chama Marcos. Sem mais preâmbulos, vamos para a sua história.

“Minha tia não espalhava, só recebia as notícias”

Quarta-feira, de ressaca do depoimento de Nise Yamaguchi na CPI, abri o Twitter de manhã e me deparei com um desabafo muito triste e sincero, de um perfil anônimo.

tweet de bolsonarista que temia pelas fake news de nise yamaguchi

Num impulso, ainda sem saber muito bem o que ia fazer com aquilo, pedi para ele uma entrevista. Topou, desde que não revelássemos sua identidade, já que não queria desavenças com a família. “Combinamos de passar o Natal juntos, nós, os sobreviventes”, justificou.

Marcos é um médico paulistano, na casa dos 40 anos. Na pandemia, passou a receber mensagens de sua tia Sônia, perguntando se eram verdade as coisas que ela recebia de grupos ou amigos. Ele desmentia, mas quem gritou mais alto acabou prevalecendo. “Ela, o marido, meu padrinho, e uma das filhas [que vamos chamar de Clara] estavam pressupostos a acreditar em tudo que caía na rede bolsonarista”.

Sônia não era lá muito fervorosa, tanto que ainda procurava com o sobrinho, do qual era próxima, com dúvidas. “Ela não espalhava, só recebia as notícias”, diz Marcos, que se lembra bem da tia falando que não iria pegar aquela doença. “Havia o senso de que nada iria acontecer com ela”.

Pergunto a ele se isso influenciava na adoção de medidas preventivas, como o uso de máscaras ou distanciamento social.

“Ela era bem ‘vida louca’, fazia o que queria, chegou a viajar para um hotel, semanas antes de se contaminar”, resgata.

Sônia contraiu a Covid-19 em fevereiro, de Clara*. Ela, por sua vez, foi infectada durante uma viagem que fez para participar de uma festa. Como Marcos, também está na casa dos 40, e manteve sua vida social praticamente igual a de antes da pandemia. Despreocupadas com qualquer risco, elas se encontraram quando Clara retornou à São Paulo. Dias depois, a filha começou a sentir sintomas e descobriu estar com a doença. Sônia adoeceu logo depois. No começo dos sintomas, ainda com o quadro leve, só pensava em Clara, no pulmão fraco da filha e no que poderia acontecer com ela.

Apesar de alegre e ativa, Sônia tinha comorbidades: hipertensão, diabetes e os rins estavam começando a dar problema. Era uma das 485 mil vidas atendidas pela Prevent Sênior, convênio focado em idosos em São Paulo com custo médio de R$800 ao mês, que afirmava, ainda em junho, ter tratado 12 mil pessoas com hidroxicloroquina com 100% de sucesso. O grupo obriga, até hoje, médicos a prescreverem o “kit Covid” (e demite quem não concorda), com a anuência do Conselho Federal de Medicina, da Agência Nacional de Saúde Suplementar e qualquer outra autoridade. Seus ditos resultados positivos nunca foram publicados ou comprovados, as mortes ocorridas em suas instalações também não foram contabilizadas e, assim, a empresa escapou de ser investigada e encerrou 2020 com um lucro de R$495 milhões de reais. Mil reais por cada vida no bolso dos sócios. Em abril de 2021 (depois de 12 meses de experimentação da Prevent com seus usuários), o Ministério Público de São Paulo abriu um inquérito civil para enfim investigar a história.

“Tenho muita raiva deles”, começa Marcos. Na primeira vez que procurou o pronto-atendimento da rede, Sônia saiu de lá com a receita que mostramos no início do texto, uma garrafada alopática de cloroquina, suplementos, vitaminas, antibiótico e anti-inflamatório. A prática, que contraria qualquer manual básico de medicina, virou norma não apenas na Prevent, mas na Unimed e na Hapvida, que inclusive fizeram eventos com o Ministério da Saúde promovendo o tratamento precoce, e até no SUS.

Receita recente emitida num hospital público de Porto Feliz/SP, meca do tratamento precoce.

No papel de médico da família, Marcos alertou a prima e a tia da ineficácia dos medicamentos, mas sem “ficar pixando muito”, para evitar rusgas e oferecer apoio.

“Não adiantou nada. Elas confiavam no tratamento e se ancoraram nisso como uma boia salva-vidas. Falaram para ela que tinha um remédio que funcionava, então obviamente ela acreditou que iria ajudar. É uma coisa cruel e até perversa, mentir desse jeito para uma pessoa doente”, desabafa.

Com o avançar dos dias, Sônia piorou bastante. Voltou ao hospital, e foi mais uma vez dispensada com os remédios. “O que ela precisava era ser internada”, pontua. Marcos orientou Clara, que não ficou gravemente doente e assumiu o papel de cuidadora da mãe, a monitorar de perto a saturação de oxigênio de Sônia. Quando chegou a 89% (quadro que exige atenção imediata, porque o ideal é acima de 95%), ela já estava com febre, diarreia e muito debilitada. As duas voltaram ao hospital, e mais uma vez a internação foi recusada. Mas Clara bateu o pé até que admitissem a mãe. Era tarde. Ela logo foi intubada. Antes, quis falar com as irmãs pelo WhatsApp. “Ela meio que se despediu de todos, foi como se soubesse que não iria voltar”.

Pouco depois, morreu em um dia de março. Embora não exista tratamento precoce, a hospitalização na hora certa faz a diferença, pois oferece o oxigênio que falta e os anti-inflamatórios na hora e do jeito que eles tem que ser tomados (não no começo da infecção, quando pioram o quadro), reduzindo os estragos sistêmicos e dando mais chance de o organismo derrotar o vírus. A demora para receber esse atendimento, por outro lado, tende a agravar a situação. Não é à toa que a mortalidade entre os intubados chega aos 80% no Brasil.

Se morre muito e se morre em silêncio. “Não teve missa ou velório, é como se a pessoa simplesmente sumisse, a ficha não cai”, relembra Marcos. Como repórter, escuto com muita frequência esse relato aterrador, o da morte invisível. Mas é impossível se acostumar com ele. “Parece que a pessoa ainda está viva, só não estamos vendo ela. Não tive um dia de sentar e chorar pela perda”. Expresso minhas condolências, me sinto mal por cutucar essa ferida. Digo a ele que temo pela minha família, porque, assim como Sônia, eles também acham que passarão incólumes pela pandemia. Ele diz que sente muito também, e compartilhamos segundos de silêncio.

Sônia foi infectada depois de um ano acreditando na teoria da “gripezinha”, que “era como uma chuva que iria molhar a todos”. Adoeceu e morreu poucas semanas depois de ter recebido a primeira dose da vacina da AstraZeneca. “Não deu tempo de fazer efeito”, lamenta Marcos. O fato de ter sido infectado pela filha é ainda mais desolador. “Não a culpo, pelo contrário, minha tia poderia ter contraído a Covid-19 de outro jeito porque se expunha, mas fico triste por ela estar nessa situação terrível… Não consigo imaginar nada pior do que ter relação com a morte da própria mãe”.

Isso não quer dizer que Marcos não tenha raiva ou não enxergue culpados. Eles os vê, não na família, mas no Palácio do Planalto. “Foi no Presidente que começou tudo isso. Enxergo eles como vítimas de um golpe”. Tem raiva também das pessoas que disseminam as notícias disparadas por uma nebulosa central de um Gabinete do Ódio, que também atua impune há pelo menos dois anos, enquanto inquéritos e CPIs avançam a passos lentos. Por ser médico, pergunto a Marcos sobre seus sentimentos em relação à classe médica. Ora, Bolsonaro pode ser o super-espalhador, mas se a categoria não tivesse comprado a ideia, o kit Covid não teria prosperado, pois seu raciocínio não sobrevive ao mais superficial exame crítico, despido das paixões políticas. Ele ilustra a situação com um caso. “Tenho um colega brilhante, um dos melhores cirurgiões que conheço, mas ele é bolsonarista, e é impressionante como isso acaba fazendo com que ele se esqueça do que aprendeu e do diploma que conquistou. Ele acredita em tudo, que o vírus foi criado em laboratório para a China aumentar seu PIB e por aí vai”.

Deixa claro que sempre votou no PSDB, nunca teve exatamente simpatia pelo Lula. Mas vê, na origem disso tudo, uma visão elitista da categoria, que começou a ficar mais evidente com a implementação do programa Mais Médicos. “No meio médico, esse discurso antipetista sempre foi muito forte, éramos bombardeados com as fake news sobre o filho do Lula. E o Bolsonaro meio que representa essa parcela preconceituosa e elitista dos profissionais, que seguem defendendo coisas sem fundamento, mesmo que isso signifique passar vergonha perante o resto do mundo”. Mesmo que isso signifique, acima de tudo, colocar em risco vidas como a da Dona Sônia.

Enquanto a pilha de corpos aumenta, as prescrições seguem saindo. Marcos, que não deixou a política afetar seu relacionamento com os familiares mais próximos, espera que ninguém mais morra, para que eles possam se encontrar no fim do ano. E perceber enfim, na cadeira vazia, que Sônia não está mais aqui.

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Chloé Pinheiro

Repórter da revista Veja Saúde, da Abril. Fora do horário comercial, escrevo livros por encomenda e textos engraçadinhos (ou não) que ninguém pediu.