Três destaques subestimados da comida de bar

Chloé Pinheiro
4 min readSep 1, 2021

Muito se fala em clichês como bolovo, torresmo com pelo, ovo colorido, mas há aspectos subvalorizados da experiência de comer em um bar simples ou (argh!) “raiz”. Listo três a seguir:

1. Pastel de bar

Penso nele ao ler notícia do possível fim do Mercearia, agora já desmentido e confirmado e desmentido de novo. No mesmo chão que abrigará uma garagem para SUVs (e isso vai acontecer, cedo ou tarde), garçons um dia rodaram o salão em noites quentes, carregando bandejas com dezenas de pastéis. Que tempos estes, hein? Em que comíamos pastéis mornos, curtidos no ar respirado por tanta gente. Carne ou palmito por dentro, trilhões de gotículas respiratórias por fora, carregando outros hálitos, doenças, palavras, histórias.

O pastel, essa instituição 100% brasileira, crocante como nenhuma outra fritura emblemática das demais nações, fica diferente quando frito em um bar. O de feira é mais farto e crocante, mas o do bar ganha no charme dos tamanhos menores, no óleo queimado, na mão do garçom que está fritando de improviso quando a cozinha já fechou, na massa esbranquiçada, levemente crua nas bordas.

Creio que nossa vingança contra os donos de apartamentos em mega condomínios será essa: eles nunca saberão o que é lambuzar os dedos na gordura de um pastel de bar. E depois tentar limpar com um guardanapo sintético que só espalha o óleo, é claro.

2. Molho de pimenta

Julgo um bar pelo seu molho de pimenta. Se o garçom pergunta se quero “a da casa”, sorrio por dentro. Melhor ainda quando ele nem fala nada, só coloca na mesa um vidro sem rótulo, com um bico de plástico cheio de molho ressecado ou uma colherzinha para servir. Meu tipo favorito, dentre os muitos existentes, é um creme laranja-avermelhado muito ardido, que queima o bigode só de cheirar, feito geralmente de uma mistura de pimentas frescas variadas, alho, óleo e cachaça. Quando como um desses, costumo perguntar pro dono quem fez (e como fez). Geralmente, são eles mesmos.

O molho de pimenta dos bares é impossível de ser reproduzido em escala comercial ou em casa — digo por experiência própria. É como uma poção mágica. Portanto, se gosto muito e tenho certa intimidade, peço pro dono fazer um vidrinho pra mim. Eles sempre topam, e não cobram nada além dos ingredientes. Uma vez, presenciei a preparação da pimenta do bar da Silvana e do Seu Bento, na fronteira da Aclimação com o Cambuci. Com perícia, num balcão minúsculo, entre tiras de jabá e bolachas recheadas, ela bateu um pacote inteiro de malagueta, uma cabeça de alho, um litro de cachaça e um de conhaque no liquidificador. Acho que pensou que eu fosse maluca, olhando com tanta curiosidade e devoção para um preparo simples, que ela fazia tantas vezes. Colocou tudo em uma garrafa de vodka, que durou dois anos na minha geladeira e fazia arder os olhos dos incautos, até as últimas gotinhas. Eis outra mágica das pimentas de bar. Elas não estragam!

Ontem, procurava um lugar menos cheio para almoçar no centro pandêmico. Optei por uma loja de plantas/bar/café hipster que anunciava, logo na porta, ser especialista em comida de roça e de sertão. No quintal vazio, entre costelas de adão e samambaias, tomando meu suco de manga com gengibre e matchá, pedi uma pimenta para acompanhar o PF. Veio Tabasco.

3. PF

A experiência com o restaurante hipster me fez pensar em outra coisa boa da gastronomia pé-sujista paulistana. A consistência no almoço. Nem todo bar tem, mas os que servem PF e pratos comerciais gozam de uma consistência admirável. Pedir um almoço num bar é saber quanto vai pagar (de acordo com o CEP) e o que vai comer (sempre), e não se arrepender nunca. Às segundas, virado, às terças, bife à rolê, quarta, feijoada, quinta, macarrão e frango ao molho, sexta, peixe frito. E, em todos os dias, os pratos básicos carne-arroz-feijão-fritas-farofa para fechar o cardápio.

Se acabar o feijão, vem mais, sem problemas ou custos extras. Para assentar, uma montanha de arroz e a farofa no potinho à parte, de preferência aquela amarela fluorescente, com pequenos pedaços crocantes de (penso eu) bacon. Que saudades de furar o ovo frito com casquinhas de chapa suja e deixar a gema escorrer por cima do feijão. E de picotar a salada servida no pires com alface, tomate fatiado fino e cebola, no máximo um pepino junto, contrariando qualquer regra de etiqueta sobre comer salada.

Não é só a comida, é a experiência. Sigo um ritual quando vou almoçar num lugar assim: peço uma cerveja, se for sábado uma caipirinha também, e espero a comida chegar olhando o pessoal que entra pra almoçar, os homens de uniforme palitando os dentes, me comendo desconfortáveis com o canto dos olhos, como se perguntassem o que eu eu estou fazendo ali.

Discretamente, anoto todos os mistérios escondidos nas menores espeluncas, antes que sejam substituídas por novas padarias, creches para pets, Cocobambus, prédios, academias. Por lugares que servem drinks com zimbro e pasteis de massa integral. Um dia, se minha barriga crescer o bastante, vou virar uma feliz dona de bar, trabalhando de chinelo, espantando os bêbados como moscas, servindo um churrasquinho só pros chegados no final de semana, com meu molho de pimenta enfim conquistado.

Manterei a impecável e singular regularidade dos bares, graças aos segredos que enfim decifrarei, escritos nas manchas de gordura dos guardanapos impermeáveis.

--

--

Chloé Pinheiro

Repórter da revista Veja Saúde, da Abril. Fora do horário comercial, escrevo livros por encomenda e textos engraçadinhos (ou não) que ninguém pediu.