Três jeitos de se apaixonar

Chloé Pinheiro
4 min readJul 9, 2021

1.Um dia, você nota que a amiga da sua namorada está olhando pra você no meio de uma conversa entre amigos. E não é você que está falando. Pela primeira vez, percebe que ela tem uma sobrancelha mais arqueada que a outra, o que confere a ela um ar de eterna dúvida. No outro dia, vocês vão juntos pegar mais cerveja e descobrem que gostam da mesma trilogia de comédia que ninguém mais conhece. E no outro, enquanto vocês esperam sua namorada sair do banheiro, ela deixa escapar algo sobre a própria vida sexual, uma queixa. Em um próximo dia, sua namorada vai viajar a trabalho e vocês dois, por acaso, se encontram no bar de sempre. Onde mais estariam numa sexta à noite, afinal de contas? Se vão lá toda semana? E nesse dia vocês encostam os ombros para juntos cruzarem o mar de gente rumo ao fumódromo, e você encosta na cintura dela para direcionar o barquinho que formaram. No fim da terceira saideira, vocês caminham juntos, e por que não seria assim? Se moram na mesma rua? Você diz que tomaria fácil mais uma, ela diz que também, o Ceará é muito chato, fecha cedo demais o bar. Aí você pergunta com a maior naturalidade se ela não quer, então, subir para tomar uma quarta saideira no seu apartamento. Já fizeram isso tantas vezes, afinal de contas. Ela sobe e, no dia seguinte, vocês dois acordam com sua namorada parada na porta do quarto.

2. Você está sóbrio há vinte anos. Mas conheceu um homem que mexe com você. Ele passa todos os dias na frente da sua loja às nove da manhã fumando um baseado que pelo cheiro parece ser bom. Você sabe pois cansou de fumar maconha nessa vida, embora seu balconista, Fábio, não faça a menor ideia disso. Na segunda-feira, quando o homem entra na sua loja, você descobre que ele é mais jovem, dez anos pelo menos, e se sente mal com o comichão dentro da cueca, porque nunca gostou de homem. Ele tem uma cicatriz na testa, usa camiseta preta surrada, muito diferente da sua camisa social de cobrador de ônibus. Compra uma chave 14 e vai embora.

Na terça, ele volta risonho: era a chave errada. Precisa da 12. Você diz que troca sem custo, mas ele insiste em pagar pelas duas, colocando a mão rapidamente sobre a sua enquanto você segura a chave certa. Sem pensar muito, você pergunta onde ele compra o beck que fuma todos os dias (sim, você ainda lembra das gírias da sua juventude). Diz que está meio enferrujado, mas que deu vontade de fumar de novo. Ele responde que vai providenciar pra você e volta na quinta, com um pacotinho de papel de pão. Em casa, depois do expediente, você abre o pacote e descobre que o cigarro já está enrolado à perfeição, com cintilâncias na erva que escapa na ponta.

O cheiro é doce. Você nem isqueiro tem mais para acender, então vai até o fogão, e dá ali mesmo o primeiro trago. Forte como o soar de um gongo, mas o segundo, já no sofá, é macio como uma lambida de cachorro. Que é, aliás, o que você sente, uma lambida do seu cachorro, se aninhando no seu colo pra te proteger do frio. A vulnerabilidade da vida te comove e seus olhos ficam úmidos. Não deveria ter ficado tanto tempo sem fumar, fica mais sensitivo chapado, a pele feliz no pelo do cachorro e o vibrar da barriga dele, tudo em alta definição, o sono vem e você nem percebe. No dia seguinte, seus vizinhos são acordados com o som de uma explosão bem mais alta que um gongo. Você esqueceu o gás do fogão aberto.

3. Você conheceu um homem e ele não é nada bonito. Estão num open bar, o que é por si só uma péssima ideia, mas você sabe que pode piorar, sempre pode piorar. É isso mesmo que quer hoje: piorar tudo. Pede pro homem, que tem as bochechas do Kiko, do Chaves, para pegar mais um vodka com red bull pra você e se lembra que precisa subir a serra de volta pra casa ainda hoje. O último ônibus sai 23h40, você não pode esquecer disso. O Kiko te pede “a honra de um beijo”, e então vocês se agarram grotescamente como só alguém a duas horas num open bar pode fazer, até propor de vocês irem pra um lugar mais tranquilo. Você diz que precisa estar na rodoviária às onze, ele diz que está de moto e conhece um motel perto da praia, no caminho. Sem saber que horas são, você topa e pinta já de capacete para avisar sua amiga de que vai sair com o Kiko. Ela ri ensandecida, parece achar que é uma piada. Você também parece pensar isso, mas começa a levar as coisas mais a sério quando encontra a moto do homem: é uma Honda Bis com só um espelho retrovisor. Já sem roupa, fumando um Derby do Kiko na janela do motel que cheira a peixe, ele te conta que é ex-presidiário. Você pergunta o que ele fez e ele diz apenas que estava com gente errada, na hora errada. Salva pelo gongo da hora, você avisa que está quase na hora de ir e ele te convence a dar mais umazinha, né Princesa? Por que não? Às 23h, Kiko encosta sua motinho na área de desembarque da rodoviária e você pede pra ele esperar enquanto você confirma se ainda tem passagem mesmo. Ele diz que vai só estacionar a moto e já volta. E, é claro, nunca mais volta e o último ônibus já partiu.

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Chloé Pinheiro

Repórter da revista Veja Saúde, da Abril. Fora do horário comercial, escrevo livros por encomenda e textos engraçadinhos (ou não) que ninguém pediu.